(Obra documenta massacres, mortes de lideranças e a invisibilidade de ‘peões’ escravizados no estado)
(Foto: Evangelista Rocha)
“Lembrar
para não esquecer, relembrar para não repetir”. A frase, usada para resgatar
memórias de eventos históricos importantes no Brasil, traduz a relevância do
livro ‘Assassinatos e impunidade no campo no Pará – 1980 a 2024’. O
levantamento é assinado por José Batista Gonçalves Afonso, advogado da Comissão
Pastoral da Terra (CPT), em parceria com Airton dos Reis Pereira, professor
doutor da Universidade do Estado do Pará (UEPA).
O livro será lançado nesta quarta-feira (3),
no auditório da Unidade 1 da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará
(Unifesspa), na Folha 31, a partir das 19 horas. O evento é uma iniciativa da
CPT em parceria com a universidade, por meio do curso mestrado de História
(Mestrado de História e do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas Territoriais
e Sociedade na Amazônia (PDTSA).
Nas páginas que serão apresentadas ao
público, estão documentadas as histórias de 1.003 assassinatos de trabalhadores
rurais no Pará. A publicação funciona como um dossiê que expõe de forma crua a
violência e a impunidade sistêmica dos crimes no campo. Além disso, a obra, por
si só, é uma robusta fonte de pesquisa para estudantes e sociedade em geral
entenderem a dimensão da barbárie agrária no estado.
“Números são frios, matemáticos. Mas, quando
a gente fala de 1.003 assassinatos, eram 1.003 vidas. Pessoas, muitas delas
casadas, com filhos, que tinham o sonho de conquistar a terra e foram privadas
disso repentinamente. São histórias, intenções e projetos. No caso das
lideranças, por exemplo, havia por trás um projeto político, sindical ou de
vida religiosa. Portanto, isso representa muito mais do que apenas dados”,
reflete José Batista em entrevista ao Correio de Carajás.
É esse resgate da memória que guia a
estrutura da publicação. Dividido em quatro capítulos principais, o livro
carrega ainda textos analíticos e testemunhais de pessoas envolvidas na luta
camponesa da região. Nomes como Francisco Jaci Solidariedade da Costa,
sindicalista histórico da Fetagri, e Ayala, militante do MST na região. Também
contribuem Luzia Canuto (filha de João Canuto, morto em Rio Maria nos anos 80,
e que também perdeu irmãos e o ex-marido para a violência no campo), e Ana
Souza Pinto, conhecida como Aninha, que atuou por anos na Secretaria de
Segurança. O grupo inclui ainda Emanuel “Mano” Wambergue, defensor de direitos
humanos bastante conhecido no município, com uma trajetória de 10 anos na CPT.
O texto inicia com uma análise sobre o
contexto da concentração de terra e a impunidade como causas geradoras da
violência. Na sequência, o capítulo 1 aborda os assassinatos de 445
trabalhadores rurais, que inclui camponeses, indígenas, quilombolas, ribeiros e
assentados que não se enquadram nas outras categorias específicas.
O capítulo 2 foca nas lideranças sindicais,
comunitárias, advogados e religiosos, como a Irmã Dorothy e o Padre Josimo. Já
o 3 relaciona as chacinas e massacres, registrando 59 casos que resultaram em
315 mortes.
Por sua vez, o 4º e último capítulo carrega
as histórias de pões, ou seja, trabalhadores de fazendas que foram assassinados
em conflitos trabalhistas ou em situações de trabalho escravo.
IMPUNIDADE, DO LATIM “IMPUNITAS”
“A impunidade é uma das principais causas da
continuidade da violência, e está associada ao problema da concentração da
terra. Aqui, as pessoas ou estavam na luta para conquistar ou para defender a
terra conquistada. Embora existam casos de trabalho escravo e conflitos com
madeireiros, a maioria absoluta dos crimes envolve a disputa pela posse. A
concentração fundiária é, portanto, uma causa extremamente relevante para a
questão da violência”, analisa José Batista.
A obra é contundente ao expor a falta de
punição ao longo desses 45 anos. O cenário revela um verdadeiro funil de
injustiça: dos 1.003 assassinatos, menos da metade (459) teve qualquer registro
de investigação. Desses, apenas 309 inquéritos foram instaurados e somente 61
casos chegaram a julgamento. A geografia da impunidade também assusta: dos 85
municípios com mortes registradas, em 51 a taxa de impunidade é absoluta, ou
seja, de 100%.
Outro número alarmante é a quantidade de
assassinatos de autoria direta das Polícias Militar e Civil, como os massacres
de Eldorado do Carajás e Pau D’arco. Foram 107 casos registrados no livro. E,
das 59 chacinas, apenas cinco foram julgadas.
VÍTIMAS E GEOGRAFIA DA VIOLÊNCIA
“Xinguara é o município com maior número de
assassinatos, mas é preciso entender o contexto geográfico. Muitos ocorreram na
região de São Geraldo do Araguaia, que, na época, era distrito de Xinguara ou,
anteriormente, de Conceição do Araguaia. Como precisamos respeitar a divisão
política do momento do crime, essas mortes inflaram as estatísticas dos
municípios-mãe. Conceição, por exemplo, contabiliza muitos casos da década de
80 justamente por abranger territórios que hoje são outros municípios”, explica
Airton.
Por trás da estatística dos 1.003
assassinatos esconde-se um dado ainda mais cruel: o apagamento da identidade
das vítimas. Segundo a pesquisa da CPT e UEPA, 245 pessoas (quase um quarto do
total) foram enterradas sem nome.
O levantamento feito por José Batista e
Airton apurou que a maioria absoluta eram “peões” vítimas de trabalho escravo.
Migrantes vindos do Maranhão, Piauí e Tocantins, eles chegavam ao Pará sozinhos
e sem documentação. No ambiente de trabalho, eram chamados apenas por apelidos
que remetiam à sua origem, como “Ceará” ou “Piauí”.
Quando assassinados, a estratégia dos
criminosos era apagar qualquer rastro. Muitos corpos foram queimados,
desfigurados ou ocultados para impedir a identificação, como no caso macabro em
que oito ossadas foram descobertas em um poço após a denúncia de um fugitivo.
Essa prática de ocultação de cadáveres não só
apagava identidades, mas servia como garantia final para a impunidade que o
livro busca denunciar.
POR DENTRO DOS DADOS
Dos 1.003 assassinatos no Pará, entre 1980 e
2024, apenas 459 resultaram em 309 inquéritos policiais ou ações penais e
54,24% dos assassinatos não foram apurados. Dos 309 inquéritos e processos
apenas 61, ou seja, 19,74%, foram julgados. Houve a condenação de apenas 15
mandantes, outros 15 foram absolvidos. Entre os executores, 42 foram
sentenciados e 4 intermediários.
Um total de 205 executores e 4 intermediários
foram absolvidos, entre eles 17 policiais militares que participaram do
assassinato de Quintino Lira e 142 policiais militares que participaram do
Massacre de Eldorado do Carajás.
Dos casos investigados, em 61 deles os
inquéritos e as ações penais foram arquivados por insuficiência de provas ou
por ter ocorrido a prescrição dos crimes. 107 mortes tem a autoria da polícia
militar e civil; dos 1.003, cerca de 245 corpos não foram identificados.
Dos 85 municípios em que houve registro de
assassinatos no campo, no Pará, apenas 34 não possuem taxa de 100% de
impunidade nos últimos 45 anos. O município de São Félix do Xingu, com 69
assassinatos, não teve ainda um único crime definitivamente julgado: impunidade
de 100%. Santana do Araguaia, com 44, e Paragominas, com 36, 100% impunidade.
Xinguara, com 148 assassinatos, e Conceição do Araguaia, com 68, apenas três
casos julgados, mas, em todos, os acusados foram absolvidos: também impunidade
100%.
Com relação as mortes de lideranças, 137
delas foram assassinadas no Pará entre 1980 e 2024, sendo: entre 1980 e 1989:
23 lideranças; entre 1990 e 1999: 21; entre 2000 e 2009: 43; entre 2010 e 2019:
44; entre 2020 e 2024: 6 lideranças.
Embora 1985 seja o ano em que mais houve
assassinatos de lideranças (9 mortes), as duas últimas décadas superaram e
muito as anteriores, com um total 87 lideranças assassinadas, com destaque para
2005 (7 mortes), 2006 (8 mortes), 2011 (7 mortes), 2017 (8 mortes) e 2018 (8
mortes).
Dos 137 assassinatos de lideranças, apenas
108 tiveram inquéritos ou processos abertos. Outros não há informações. Dos 137
assassinatos, somente 27 casos foram a julgamento.
O livro também contabiliza 59 casos de
chacinas e massacres, com um total de 317 mortes. O número representa 31,61%
dos assassinatos de camponeses, peões e lideranças no campo, no estado, ao
longo de 45 anos. Desses 59, cerca de 73% dos casos foram de camponeses, com
destaque para a categoria posseiros, com 203 mortes, e 18 casos foram de peões:
114 peões assassinados, representando 35,96% das mortes em chacinas e massacres
no período. Dos 18 casos, 12 são relacionados diretamente ao trabalho escravo,
sendo 67% do total de chacinas de peões.
Das 153 vítimas nas chacinas e massacres,
48,26%, foram registradas como “não identificadas”. Entre elas, 63 são
camponeses, com destaque para os posseiros, e 90 são mortes de peões.
Do total das 59 chacinas e massacres, com 317
assassinatos, 76,96% dos casos e 82,65% das mortes ocorreram no sul e sudeste
do Pará. Dos 317 assassinatos, em 59 casos, apenas 27 inquéritos ou processos
foram instaurados. Apenas 7 casos foram a julgamento.
A pesquisa também levantou que 227 peões
foram assassinados no Pará. Desse total, 114 foram em chacinas e massacres,
representando 52,22% do total das mortes de peões. Dos 227, apenas 25 casos têm
inquéritos ou processos e em apenas 2 (8%) ocorreram julgamento dos executores
dos crimes. Ou seja, em apenas 8% dos casos ocorreu o julgamento.
A impunidade em relação aos mandantes dos
crimes é de 100%: nenhum foi julgado e condenado. Se considerarmos o número
total de vítimas e o número relacionado aos 2 casos julgados (cinco peões), a
taxa de impunidade é de 97,80%.
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